Introdução
Uma das dúvidas mais frequentes entre médicos que aplicam toxina botulínica terapêutica é se diferentes marcas comerciais apresentam capacidades distintas de dispersão no tecido muscular. Essa questão é especialmente relevante quando consideramos a segurança e eficácia dos tratamentos, particularmente em condições como espasticidade, distonia cervical e enxaqueca crônica.
Durante anos, acreditou-se que as características moleculares específicas de cada formulação determinariam padrões de dispersão diferentes. No entanto, evidências científicas recentes demonstram que a marca da toxina botulínica não é o fator determinante na dispersão tecidual. O que realmente importa são aspectos relacionados à técnica de aplicação e ao protocolo de diluição utilizado.
O Mito da Dispersão Relacionada à Marca
Historicamente, diferentes formulações de toxina botulínica tipo A (como onabotulinumtoxinA, abobotulinumtoxinA e incobotulinumtoxinA) foram comercializadas com alegações sobre perfis de dispersão distintos. Alguns fabricantes sugeriram que suas formulações teriam maior ou menor capacidade de difusão, o que influenciaria a escolha do produto para diferentes indicações clínicas.
Essa premissa, no entanto, não se sustenta quando analisamos a literatura científica de forma crítica.
O Que Determina a Dispersão: Evidências Científicas
1. Volume de Diluição
Múltiplos estudos demonstram que o volume de diluição é o principal fator que influencia a dispersão da toxina botulínica no tecido. Quanto maior o volume injetado, maior a área de dispersão da toxina.
Um estudo publicado por Borodic et al. (1994) no Movement Disorders demonstrou que volumes maiores de injeção resultam em maior difusão da toxina, independentemente da formulação utilizada. Os autores concluíram que a técnica de diluição deve ser ajustada conforme o objetivo terapêutico: volumes menores para ações mais focalizadas e volumes maiores quando se deseja atingir áreas musculares mais amplas.
Hexsel et al. (2009), em estudo publicado no Dermatologic Surgery, compararam diferentes volumes de diluição e confirmaram que a dispersão é diretamente proporcional ao volume injetado, não à marca do produto.
2. Técnica de Aplicação
A profundidade da injeção, a velocidade de aplicação e o número de pontos de injeção são fatores técnicos que influenciam significativamente a dispersão.
Dressler & Sabatowski (2005), no European Journal of Neurology, demonstraram que a técnica de injeção (incluindo ângulo da agulha, profundidade e pressão aplicada) tem impacto direto na distribuição da toxina no músculo-alvo. Injeções mais superficiais tendem a ter maior dispersão lateral, enquanto injeções profundas e bem localizadas concentram o efeito.
3. Características do Tecido-Alvo
A vascularização local, o grau de fibrose muscular e o estado de contração do músculo no momento da aplicação também interferem na dispersão. Músculos espásticos, por exemplo, podem apresentar padrões de dispersão diferentes de músculos em repouso, conforme demonstrado por Shaari & Sanders (1993) no Muscle & Nerve.
4. Dose e Concentração
A concentração final da toxina (unidades por volume) influencia a dispersão de forma independente da marca. Carruthers et al. (2003), no Journal of the American Academy of Dermatology, demonstraram que concentrações mais diluídas favorecem maior dispersão, enquanto concentrações mais altas produzem efeitos mais localizados.
Por Que as Moléculas Não Interferem?
Embora existam diferenças nas formulações comerciais (presença ou ausência de proteínas complexantes, por exemplo), essas diferenças não alteram significativamente o comportamento de dispersão da toxina no tecido.
Dressler (2012), em revisão publicada no Journal of Neural Transmission, analisou estudos comparativos entre diferentes formulações e concluiu que não há evidências consistentes de que as características moleculares das diferentes marcas resultem em padrões de dispersão clinicamente relevantes. O autor enfatiza que fatores técnicos superam qualquer diferença teórica entre as formulações.
Ranoux et al. (2002), no Movement Disorders, realizaram estudo comparativo direto entre diferentes formulações em pacientes com distonia cervical e não encontraram diferenças significativas nos padrões de dispersão quando volume e técnica foram padronizados.
Implicações Práticas para o Injetor
Para Tratamento de Espasticidade
Em membros espásticos, onde frequentemente desejamos atingir músculos profundos e específicos, a técnica de localização (palpação, eletroestimulação ou ultrassom) e o volume de diluição são muito mais relevantes que a escolha da marca.
Para Distonia Cervical
No tratamento da distonia cervical, onde músculos como esternocleidomastóideo, esplênio da cabeça e trapézio são alvos comuns, a precisão anatômica e o volume injetado determinam o sucesso terapêutico, não a formulação escolhida.
Para Enxaqueca Crônica
No protocolo PREEMPT para enxaqueca crônica, a padronização dos 31 pontos de injeção com volumes fixos (0,1 mL por ponto) garante resultados consistentes independentemente da marca utilizada, desde que respeitadas as equivalências de dose.
Conclusão
A evidência científica é clara: a marca da toxina botulínica não interfere de forma clinicamente significativa na sua capacidade de dispersão. Os fatores que realmente determinam o padrão de dispersão são:
- Volume de diluição (fator mais importante)
- Técnica de aplicação (profundidade, ângulo, número de pontos)
- Características do tecido-alvo
- Concentração final da solução
Como injetores, devemos focar no aprimoramento da técnica, no conhecimento anatômico profundo e na padronização dos protocolos de diluição. A escolha da marca deve basear-se em disponibilidade, custo-benefício e familiaridade do profissional com as equivalências de dose, não em supostas diferenças de dispersão.
Dominar esses aspectos técnicos é fundamental para otimizar resultados e garantir segurança aos nossos pacientes.
Referências Bibliográficas
- Borodic GE, Cozzolino D, Ferrante R, Wiegner AW, Young RR. Histologic assessment of dose-related diffusion and muscle fiber response after therapeutic botulinum A toxin injections. Mov Disord. 1994;9(1):31-39.
- Hexsel D, Hexsel C, Siega C, Schilling J, Dal’Forno T, Rodrigues TC. Fields of effects of 2 commercial preparations of botulinum toxin type A at equal labeled unit doses: a double-blind randomized trial. Dermatol Surg. 2009;35(12):2021-2027.
- Dressler D, Sabatowski R. Botulinum toxin: mechanisms of action. Eur J Neurol. 2005;12 Suppl 4:3-9.
- Shaari CM, Sanders I. Quantifying how location and dose of botulinum toxin injections affect muscle paralysis. Muscle Nerve. 1993;16(9):964-969.
- Carruthers J, Fagien S, Matarasso SL; Botox Consensus Group. Consensus recommendations on the use of botulinum toxin type A in facial aesthetics. J Am Acad Dermatol. 2003;49(1 Suppl):S19-27.
- Dressler D. Clinical applications of botulinum toxin. J Neural Transm. 2012;119(7):819-826.
- Ranoux D, Gury C, Fondarai J, Mas JL, Zuber M. Respective potencies of Botox and Dysport: a double blind, randomised, crossover study in cervical dystonia. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 2002;72(4):459-462.
